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A mostrar mensagens de janeiro, 2018

Abençoada ignorância

Ela fez-te feliz.  Deixou-te vaguear por este mundo fora à descoberta de conhecimentos que não te deixou aprofundar, deu-te livros para ler e filmes para ver sem te dar que pensar, deu-te memórias desinfetadas de introspeção, deixou-te adormecer assim que caías na cama e não te obrigou a planear. Ela fez-te confiante.  Com ela querias ir mais longe, saber mais e mais sobre um assunto sem te questionares porquê nem para quê.  Afastaste-a aos poucos.  Foste deixando de querer aproveitar o mar simplesmente porque é o mar, e o céu porque é o céu. Foste largando a sua mão quando procuravas o conhecimento, agora aprofundado, das coisas. Foste-te esquecendo dela porque o novo mundo de pensamentos te fascinava. Afinal, pensar um pouco sobre tudo era bom. Ela desistiu.  E ficaste na solidão de um quarto vazio de tão cheio de sobreposições entre reflexões sem fim. Procuraste-a para fugir às horas em que estavas indeciso entre escolhas, quando acabava...

Estou farta de ti.

Estou farta de ti. Isso mesmo. Já não aguento mais isto. Escrevo-te hoje, porque não aguento mais ver-te todos os dias e ter de aguentar com o que tens a dizer (e tens SEMPRE algo para dizer). Porque é que tens sempre de comentar tudo? Deixa as tuas opiniões para ti, porque eu já não quero saber. Houve uma altura em que te ouvia com atenção, mas isso acabou quando deixaste de ouvir o que eu tenho para dizer. Enquanto te escrevo, estou a ver uma fotografia nossa, que cuidadosamente guardei numa moldura encarnada. Foi tirada há muito tempo, quando ainda estava tudo bem. Antes, adorava-a, mas agora detesto olhar para ela, olhar para ti. O problema é que, mesmo que não te veja, estás presente em todo o lado e isso irrita-me profundamente. Não suporto a forma como me fazes sentir tão pequena. Tens esse poder, sempre o tiveste, desde que te conheci. Gostas de te sobrepor a mim, de ser maior e mais importante. Gostas que os outros te tratem como um ser superior que tem razão em tudo o...

Páginas soltas

Ela acorda naquela manhã e vê a mesma carta de sempre à cabeceira. Como habitual, vira-a para baixo e ignora a sua presença. A custo, levanta-se da cama que todas as noites apaga, por umas horas, tudo o resto.  São rotinas.  Prepara o tão precioso café, troca o pijama pela farda do emprego e pega no pincel e na maquilhagem, para esconder quaisquer vestígios do cansaço que a persegue e parece não desistir. Esconde também as cicatrizes, não pelo que os outros possam pensar, mas para as esquecer. Antes de fechar a porta, olha de relance para o quarto ao fundo do corredor.  Ainda não teve coragem de lá entrar.  Analisa as letras azuis na porta e, por momentos, relembra o dia em que as pintaram.  Volta a baixar os olhos para o chão, tranca a porta e sai de casa. A caminho do emprego, não pensa em nada. A sua mente é um simples vazio. A música da rádio é a banda sonora enquanto passa por aquele parque, o sítio que mais adora e mais odeia neste mundo....