Coração

O coração não parte, o coração só rasga.
Só não sei se rasga por não saber partir
Ou pelo jeito de quem lhe pega.

Mas o que rasga só se conserta cosendo,
E o que se cose pela segunda vez nunca fica igual à costura inicial.
A bainha fica mais curta num lado e comprida do outro,
Porque a mão humana não sabe desenhar sem sair fora das linhas.

Então há sempre parte do coração que fica escondida por entre as costuras,
Parte do coração que um dia esteve vivo e irrigado
E que agora é apenas um pedaço de pano morto,
Pano perdido e inútil,
Puramente a ocupar espaço que não se vê.

Um pano por ressuscitar,
Se alguém um dia procurar o que entre os fios está oculto,
Se alguém um dia,
Com o cuidado limitado da mão humana,
Levantar pedaço a pedaço
À procura do que encaixava inicialmente e entretanto se remoldou.
Se alguém encontrar algum sentido
Por entre as fibras que um dia se inquietaram
E que agora estão negras, sem vida. 

Mas, voltando, o que dizem as fibras?
Não voltam assim.
Voltam desconcertadas,
Voltam pensativas e reticentes,
Desconfiadas eternamente.

Não voltam fibras,
Voltam cordas
Que agora amarram a tentativa de coração que foi sendo construída aos poucos.
Cordas finas,
Mas que marcam o restante músculo,
Que cortam e recordam o que um dia as fez enrijecer. 

E o sangue continua a passar,
Ignorante ao que o rodeia,
Ignorando que as outras estradas rapidamente desabam
E que mãos alheias tentam mantê-las direitas.
Mas erram, 
Endireitam só para as entortar mais ainda.
E é mais uma bainha mal feita,
Mais uma costura sem jeito,
Mais uma fibra a mudar de nome.

E por entre os retalhos
E as costuras desfeitas,
Que de conserto têm muito pouco,
Vai ficando tecido morto,
Necrótico,
Apodrecendo no meio do vermelho pulsante
Que tenta em vão preencher o espaço vazio,
Mas apenas consegue disfarçar
Diminuindo o tamanho do tecido.

Comentários

  1. E eis que o meu coração se enche de alegria de te ver voltar à tua escrita…
    E voltaste em grande!

    Afinal… todos temos corações costurados…
    Uns em alta costura, pelas mãos de artistas de renome
    Outros por mãos modestas, que dão o seu melhor
    Outros ainda pelas nossas próprias mãos, amadoras e trémulas…
    Usando muitas vezes cola barata, à falta de fio de seda.
    Nunca fica como novo, não.
    Um coração que foi à guerra jamais volta ao que era.
    Mas sabe lutar, sabe chorar e sabe sobreviver.
    Não ama ou odeia menos que antes,
    Fica mais feio, de retalhos feito.
    Ou fica mais bonito, de histórias tatuado.
    O meu… tem escrito a vida que já vivi.
    Assim…nunca vou esquecer.

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