Páginas soltas

Ela acorda naquela manhã e vê a mesma carta de sempre à cabeceira. Como habitual, vira-a para baixo e ignora a sua presença.
A custo, levanta-se da cama que todas as noites apaga, por umas horas, tudo o resto. 
São rotinas. Prepara o tão precioso café, troca o pijama pela farda do emprego e pega no pincel e na maquilhagem, para esconder quaisquer vestígios do cansaço que a persegue e parece não desistir. Esconde também as cicatrizes, não pelo que os outros possam pensar, mas para as esquecer.
Antes de fechar a porta, olha de relance para o quarto ao fundo do corredor. Ainda não teve coragem de lá entrar. Analisa as letras azuis na porta e, por momentos, relembra o dia em que as pintaram.  Volta a baixar os olhos para o chão, tranca a porta e sai de casa.
A caminho do emprego, não pensa em nada. A sua mente é um simples vazio. A música da rádio é a banda sonora enquanto passa por aquele parque, o sítio que mais adora e mais odeia neste mundo. Encosta o carro e fica alguns minutos sentada no banco de jardim, enquanto não pensa em absolutamente nada e apenas aprecia a brisa fresca da manhã. 
Quando se levanta, hesita. Parece sentir algo parecido com dor. Mas logo depois desvanece e deixa-a, novamente, sozinha.
O trânsito não a incomoda e enquanto os outros condutores serpenteiam as filas para chegar ao seu destino mais depressa, ela conduz calmamente. Por ela, nem pisava o acelerador, que tanto lhe custa fazer. Mas disseram-lhe que "tem de ser", senão vai ficar sempre no mesmo sítio. Senão não volta a sentir.
Estaciona perto do café. Quando entra, o patrão diz que, obviamente, está dispensada e pode ir para casa. Ela ignora, como em todos os outros dias. Põe-se atrás do balcão e pinta um sorriso para agradar aos clientes.
Na hora de almoço, aquece o tupperware que trouxe consigo e senta-se nas traseiras do café, em sossego. Os seus pensamentos são um simples espaço desocupado.
Volta ao balcão e retoca o sorriso.
Ao final da tarde, fecham o café e ela retorna às longas filas de trânsito. Faz uma paragem antes de voltar a casa, para trocar as flores de ontem por outras mais recentes.
Finalmente, abre a porta do prédio e sobe as escadas, a custo. Apercebe-se que não come desde de manhã e isso explica a sua fraqueza. Promete a si mesma que vai jantar.
Há um silêncio pesado em todas as divisões, mas ela não o sente. Come uma pequena fatia de pão e o cansaço começa a consumi-la. Senta-se no chão do corredor, de frente para a porta do fundo, que permanece fechada. Não sente nada. Talvez se entrar comece a sentir novamente. Pega na maçaneta e encosta a cabeça à porta. Alguns minutos passam até se afastar e voltar ao seu quarto.
Senta-se na cama e olha as paredes. Pega na carta e lê o que é visível com o envelope fechado: 
"querida mãe,"
Sente uma pontada de desgosto e uma única lágrima cai sobre o papel. Mas, tal como tudo, desaparece rapidamente e ela volta a mergulhar na solidão da dormência em que vive. Coloca a carta na mesa de cabeceira, voltada para cima. Talvez amanhã a leia. Talvez amanhã volte a sentir.

Comentários

  1. Maria Dolores Torres8 de janeiro de 2018 às 10:25

    Um yrxto perturbador.
    Não gostamos de pensar "nisto". Não queremos falar "disto". Afastamos o assunto dos nossos pensamentos, das nossas comversas.
    E quando com ele convivemos,mesmo de forma distanciada, apenas conseguimos dizer:"força","coragem","a vida tem que continuar".
    Não,a vida não continua.
    Já lhe chamaram - "a dor maior" - a perda de um filho. A inversão do ciclo natural da vida. O luto eterno. A difícil reinvenção da nossa existência,que este texto tão bem ilustra.

    ResponderEliminar
  2. Um texto perturbador..... sem duvida. De uma mente muito sã que sabe mais da vida do que devia. Uma pessoa muito forte, alegre e radiosa que sabe voar até aos sentimentos humanos mais profundos e tristes.
    Gosto do que escreves. Gosto de como falas do que vai na alma... simplesmente porque sim!
    Escreve. Lê. Fala. Grita. Chora e ri até mais não. Tudo isso és tu. E a vida é tudo isso.
    Continua a ser.

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Coração

Hoje vou morrer

Ouve