"Próxima estação..."
Estou sentada no banco à espera do autocarro, enquanto tento manter todos os livros no meu colo sem que caiam para o chão.
Ao meu lado senta-se uma menina, nos seus 5 anos, a brincar com dois guarda-chuvas. Enquanto o faz, repete o som do metro a circular nos carris e diverte-se a imitar a voz que dá as informações. Não pede mais nada, aproveita só isto. E repete, e repete, e repete... tão simples.
Olha para mim com os seus olhos curiosos. Sorrio involuntariamente, talvez porque a sua inocência chega a ser irónica, ou talvez porque um dos guarda-chuvas é igual a um que também tive em tempos e com o qual devo também ter inventado aventuras intermináveis e sempre tão cativantes.
A chuva ainda cai e sinto o vento no cabelo. Ouço a mãe da criança a ter uma conversa acesa ao telemóvel, talvez acerca do trabalho. Parece impaciente. A menina vai recebendo chamadas de atenção, mas continua a focar-se na sua imaginação. E eu continuo fascinada com o diálogo que não sabia poder existir entre dois chapéus de chuva. Eu também era assim? Também criava um mundo onde quisesse, com esta facilidade?
Do outro lado da estrada vejo um velho que caminha lenta e dolorosamente, vendo-se obrigado a ver passar por si todos os que ainda conseguem andar com rapidez e destreza. Vejo algo desvanecer no seu olhar a cada vez que perde a corrida contra mais uma pessoa que acelera, sem o saber nem apreciar. Na sua mão, tem um saco de plástico com cadernos e lápis de cor e ainda traz consigo um bolo que, suspeito, irá oferecer aos netos que estarão demasiado ocupados para agradecer decentemente. Não consigo perceber se se sente sozinho, mas pressinto um vazio na forma como olha o chão.
Chega um autocarro e vejo o condutor a responder aos vários “boa tarde” que recebe, sem sentir nenhum deles. São respostas rotineiras e inconscientes. Neste autocarro, está uma rapariga à janela, a olhar a interface entre o vidro e a porta, para onde seguem as gotas da chuva. Noto também que há chuva a cair dos olhos dela. Claramente no seu próprio mundo, levanta a mão e segue uma gota na janela com o dedo, enquanto mexe os lábios ao cantar a música que ouve nos fones. Por momentos, cruzamos olhares. Reconheço uma dor profunda e que me dilacera por dentro.
As portas do autocarro fecham, a rapariga esconde a cara nas mãos e sinto-a a empurrar emoções para bem longe de vista. Sinto arrependimento.
Do outro lado da rua, o velho começou agora a subir as escadas e sinto o esforço que faz, mas a felicidade que vai sentir quando os netos usarem aqueles lápis.
Volto a ouvir a criança a imitar o som do metro a circular. A mãe dela pega-lhe na mão e dirige-se para a porta do autocarro já à espera.
Olho para trás e vejo o meu próprio reflexo, com o cansaço notório. Pondero uns segundos, analisando a pessoa tão diferente de mim que vejo, e volto à posição inicial. Estranho.
Observo a chuva a correr pela estrada inclinada e ouço o som das rodas dos carros. O meu autocarro chega e levanto-me. Caminho até ao meu lugar.
E, naquele momento, não penso em nada. E sabe bem.
Gosto como descreves os teus pensamentos perdidos que ocupam o vazio dos momentos.
ResponderEliminarEsperas no autocarro, mas sei que fazes esse exercício muitas vezes. Basta olhares…. basta reparares. E tu reparas. Tu sabes voar acima de ti.
Também eu o faço. Também eu me perco em desvarios imaginários sobre vidas à minha volta. Isenta de qualquer preconceito, gosto de observar comportamentos, rostos, expressões. Cada uma dessas vidas encerra em si uma vivencia. Um passado. Um futuro. Alegrias, tristezas, mágoas, mentiras, segredos.
Será que alguém já teve os mesmos pensamentos sobre mim? Será que alguém já reparou nas minhas lágrimas? Será que alguém na multidão reparou sequer em mim?
Na verdade… os outros pouco mais são que o nosso próprio reflexo… como um espelho. Somos nós…. Pedaços de nós… em cada uma das pessoas. E se estarmos incógnitos no meio da multidão nos faz sentir sozinhos, olhar as pessoas na sua simples vidinha… faz-nos saber que afinal todos somos tão parecidos. Partilhamos isso com os estranhos e eles fazem-nos companhia sem o saberem.
Se alguém reparou em mim… ou em ti, irá sair na próxima estação e nunca não saberemos…