Vermelho vivo, preto manchado, branco vazio

Dia 0 - Choque
Cheguei a casa e recebi a notícia pelo telefone. Haverá pior forma de me informar?? Como é suposto conseguir reagir e responder o que quer que seja a uma chamada destas? 
Fico em choque sentado à beira da cama, à espera que seja apenas uma partida de muito mau gosto. Mas não é.
Não pode ser possível. Ainda ontem me ri contigo. Onde foste? Já podes voltar, esta brincadeira não tem piada.
Apanhaste-me!

Dia 1 - Raiva
Sinto uma raiva a apoderar-se de mim. Apetece-me gritar com toda a gente que me diz que tudo vai ficar bem e apetece-me sair daqui, ir para bem longe e partir alguma coisa. Partir várias coisas.
Porquê? Nem faz sentido. Nunca me senti tão enraivecido na minha vida.
Passo o dia todo sem dirigir uma única palavra a quem quer que seja. E, aos que tentam insistir, dou por mim a gritar palavras que estavam escondidas bem nas profundezas no meu ser, sinto coisas que nem sabia serem possíveis. 
Deixem-me todos em paz. 
Só quero estar sozinho.

Dia 2 - Culpa
Acordo com a almofada ainda húmida e com lágrimas secas na face. Devo ter adormecido ao som da melodia do meu choro... porque ontem apercebi-me um pouco do que aconteceu, pela primeira vez. Deixo-me ficar na cama, porque já nada vale a pena sem ti. Não sei o que fazer, como viver, como sorrir...
Não te consegui proteger, a culpa foi toda minha. Podia ter estado contigo, podia ter-te tirado de lá... podia... mas não o fiz. Desculpa... mas não desculpes, não mereço.
Para quê falar contigo, se não me ouves? Deixo-me submergir no oceano de lágrimas que parece não cessar. Mas não quero que cesse. 
Quero que doa.

Dia 3 - Cerimónia
Acordei chateado por ser obrigado a vestir preto. Não gosto de preto, nunca gostei. Sempre fui adepto de cores vivas: vermelho sangue, por exemplo, que, a meu ver, era até mais adequado para a ocasião.
Levantei-me e fiquei a olhar para o armário aberto e cheio de cores proibidas. Naquela manhã, tudo era cinzento e negro. Não sabia o que vestir. O que se veste para estas ocasiões? Tudo parece errado... Não posso usar o fato que usei para o baile de finalistas, e não ia comprar um fato só para isto. Aceitei que, o que quer que vestisse, ia ficar permanentemente manchado de tristeza.
Na verdade, nada disto importa. Preto, vermelho... para quê pensar tanto em tudo? É indiferente, não faz diferença absolutamente nenhuma. Se a sociedade diz que é mais adequado vestir preto, fá-lo-ei. Espero que não te importes.
O que me chateia ainda mais é a quantidade de pessoas que nem te conhecia e vai lá estar, de lenço na mão, a lamentar o que aconteceu. Deviam ter vergonha na cara. Não têm direito nenhum de lá estar e sei que não as queres lá.
Nem sei se te quero ver hoje... mas sei que lá vais estar. Não vou saber agir...
Onde ponho as mãos, se não tenho as tuas aqui?

Dia 4 - O dia seguinte
Ainda tenho vestido o fato de ontem. Não sei o que fazer com isto... sinto que estou a olhar para o espelho há uma eternidade, mas sinto-te no preto. Se o tirar, oficializo tudo. Talvez se continuar com ele vestido, tu fiques.
Fica, então.

Dia 31 - Afundar
Sinto a tristeza a desaparecer e não gosto disso. Sinto as lágrimas a escorrer, mas não sinto angústia. Parece... parece que estou a deixar de sentir. Detesto isso. Mas digo 'detestar' apenas pela expressão, porque não tenho forças para sentir de facto ódio.
Quem me dera que voltasses, para isto acabar.

Dia 53 - Fundo
Por mais que tente agarrar-me a ti, já te foste embora há muito. Sei que estou muito perto de me perder e não faço nada em relação a isso. Não sou capaz de me iludir mais.
Finalmente, desisto.

Dia 87 - 
Caminho pelas ruas sem sentir absolutamente nada. Não, "caminho" não... vagueio. Vagueio por estas ruas sem sentir nada. Não nasci assim, mas assim fiquei.
Passo por pessoas conhecidas e sorrio-lhes de forma vazia. Não questionam.
Vida rotineira. Acordar, cereais com leite, banho, autocarro, aulas, almoço, aulas, autocarro, casa. Em casa vou ajudando e fazendo o que tenho de fazer, mas maioritariamente deito-me na cama e olho o teto branco. Branco. Não puro, mas vazio.
De vez em quando levo a mão ao pescoço e procuro sentir a minha pulsação. Deixo-a lá ficar algum tempo e sinto o sangue a correr, para chegar onde deve. Sinto o esforço que o meu coração faz para me manter aqui. Aparentemente ainda estou vivo.
Mas embora ele contraia, o meu coração foi-se perdendo pelo caminho e já pouco resta.
Acho que é uma questão de tempo.

Dia 102 - "Vai tudo ficar bem"
Mentiram.

Comentários

  1. Não vai ficar tudo bem.
    O tempo não apaga. Apenas suaviza.
    Não é suposto apagar nada!

    Sim... mentiram.

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