Ligado à corrente
Telefono-lhe na manhã de dia 5. Se a memória não me falha, há 2 anos foi quando parou de me ligar. Pergunto-me se atenderá... normalmente atende, mas não fala muito, deixa-me a mim falar; gosto disso, sinto-me genuinamente ouvida.
Atende. Mas só o sei porque deixo de ouvir o som dos toques no telemóvel, porque não ouço voz nenhuma do outro lado. Mas ela está lá, eu sei que está.
Pergunto-lhe como se sente e obtenho a mesma reação: não sente nada. Na realidade, não sei o que sente, porque não mo diz.
Hoje foi diferente. Estava quase a desistir de perguntar, quando me responde que não sabe descrever o que sente, mas que tem a certeza de que não o quer sentir. Respondo o mesmo de sempre: temos de ir aguentando, pelos outros... e reforço com um "preciso tanto de si...", que é a maior verdade do mundo. Falo-lhe do sorriso dos netos quando a ouvem falar e do quanto também precisam dela.
Diz-me que, quando sente, sente dor; quando não sente, não se reconhece. Não sei bem o que responder, pelo que continuo na mesma linha.
A determinada altura, diz que não quer falar mais, não consegue falar mais, e que quer desligar a chamada. Fico horrorizada e explicito o quanto preciso de falar com ela. Perante isto, responde que posso sempre ligar a qualquer outra pessoa, até porque falar com ela é quase o mesmo que falar com uma parede. Não tem mesmo noção.
Continuo a insistir, para evitar que desligue a chamada. Tenta pedir que desliguem por ela, mas respondem que não é permitido. Suspiro de alívio.
Afunda no silêncio até dizer que o telemóvel está a ficar sem bateria, novamente. Digo-lhe que é preciso comprar uma bateria nova, mandar arranjar, mas parece ignorar.
Pede para desligar, até porque a bateria está quase a esgotar-se, pelo que eu peço que aguente mais um pouco. Ponho no altifalante e fico com o ruído de fundo das máquinas que a rodeiam, enquanto conduzo. Quando chego ao quarto, parece já ter adormecido... ou talvez apenas tenha cedido aos medicamentos.
Pego no telemóvel e tiro-o da sua mão, já sem forças, colocando-o na mesa de cabeceira e ligando-o à corrente.
"É preciso mantê-lo à carga, tontinha... amanhã volto a ligar." Digo-lhe. E enquanto lhe beijo a testa, vejo os seus olhos vidrados e reparo na lágrima apática e solitária que deles se desprendeu. Deve ser uma reação ao tratamento... limpo-a com o meu cachecol e saio do quarto de hospital.
É preciso mantê-la ligada à corrente... por nós.
Atende. Mas só o sei porque deixo de ouvir o som dos toques no telemóvel, porque não ouço voz nenhuma do outro lado. Mas ela está lá, eu sei que está.
Pergunto-lhe como se sente e obtenho a mesma reação: não sente nada. Na realidade, não sei o que sente, porque não mo diz.
Hoje foi diferente. Estava quase a desistir de perguntar, quando me responde que não sabe descrever o que sente, mas que tem a certeza de que não o quer sentir. Respondo o mesmo de sempre: temos de ir aguentando, pelos outros... e reforço com um "preciso tanto de si...", que é a maior verdade do mundo. Falo-lhe do sorriso dos netos quando a ouvem falar e do quanto também precisam dela.
Diz-me que, quando sente, sente dor; quando não sente, não se reconhece. Não sei bem o que responder, pelo que continuo na mesma linha.
A determinada altura, diz que não quer falar mais, não consegue falar mais, e que quer desligar a chamada. Fico horrorizada e explicito o quanto preciso de falar com ela. Perante isto, responde que posso sempre ligar a qualquer outra pessoa, até porque falar com ela é quase o mesmo que falar com uma parede. Não tem mesmo noção.
Continuo a insistir, para evitar que desligue a chamada. Tenta pedir que desliguem por ela, mas respondem que não é permitido. Suspiro de alívio.
A chamada cai.
Volto a ligar e atende, forçosamente.Afunda no silêncio até dizer que o telemóvel está a ficar sem bateria, novamente. Digo-lhe que é preciso comprar uma bateria nova, mandar arranjar, mas parece ignorar.
Pede para desligar, até porque a bateria está quase a esgotar-se, pelo que eu peço que aguente mais um pouco. Ponho no altifalante e fico com o ruído de fundo das máquinas que a rodeiam, enquanto conduzo. Quando chego ao quarto, parece já ter adormecido... ou talvez apenas tenha cedido aos medicamentos.
Pego no telemóvel e tiro-o da sua mão, já sem forças, colocando-o na mesa de cabeceira e ligando-o à corrente.
"É preciso mantê-lo à carga, tontinha... amanhã volto a ligar." Digo-lhe. E enquanto lhe beijo a testa, vejo os seus olhos vidrados e reparo na lágrima apática e solitária que deles se desprendeu. Deve ser uma reação ao tratamento... limpo-a com o meu cachecol e saio do quarto de hospital.
É preciso mantê-la ligada à corrente... por nós.
Ligar à corrente… o telemóvel… a vida…
ResponderEliminarLigar à corrente… ou simplesmente desligar.
Desligar o telefone e apenas escutar o silêncio da ausência dos incessantes “plins”. Há sempre alguém a mandar alguma inutilidade. Sabe bem desligar do mundo, de vez em quando.
Mas na vida… a bateria demora a carregar, com anos de momentos e emoções acumuladas, com lágrimas, saudades, sorrisos, medos e alegrias. Com tropeções, feridas nos joelhos e pensos rápidos. Com ralhetes e chineladas e depois miminhos e desculpas. Com tantos desgostos e os cíclicos “toca para a frente” e segue!
Às vezes saberia tão bem desligar tudo isso… guardar na cloud do nosso pensamento e descarregar apenas se se quisesse.
Mas por todos… não se desliga. Enquanto a nossa vida está ligada à corrente, continuamos a carregar, a nós e aos outros, mesmo com a bateria fraquinha, com falhas e cores já esbatidas.
Enquanto a vida for vida, é preciso mantê-la ligada à corrente.
Obrigada Raquel… por me fazeres, mais uma vez, pensar um pouco… para chegar a ti.