Banquete de Distância

Quilómetros. Esses que sempre chegam e que me afastam de quem quero manter por perto. Esses que me separam eternamente de onde quero estar.
Se te quero aqui, empurram-te para longe. Se me quero longe, amarram-me aqui.
Com eles, trazem a velha Despedida, que há vários anos tento evitar. Parece sempre difícil escolher entre cruzar-me com ela ou com o Arrependimento, que pode sempre decidir aparecer sem aviso. Nunca sei se prefiro oficializar a partida ou se quero apenas fingir que não me apercebi que finalmente chegou.
Sorrisos de aventura; lágrimas pulsantes.
E é então que a Distância finalmente assina a folha de presenças, com o seu brilho nos olhos habitual. Às vezes vem quando está a chover, e tudo parece mais sonoro, mais fatídico, mais musical.
De mão dada com ela, vem a Solidão, com o olhar cabisbaixo e a tremer enquanto ajeita o cabelo com a mão livre.
Todos se juntam à mesa para o grande banquete: a Distância senta-se à cabeceira, roubando o lugar destinado à Felicidade, que tenta, em vão, propor um brinde; a Sorte parece estar numa discussão acesa com o Tempo, ignorantes às palavras da Distância, que começou um dos seus habituais discursos, mas é forçada a pedir ajuda à Ansiedade para manter a ordem e o silêncio, pois parece ser a única que não está a falar e se limita a sentar-se na cadeira respetiva, com as mãos a tremer e lágrimas já secas; a Solidão não mudou e mantém-se de pé, encostada à parede, propositadamente alheia à situação e recusando o lugar reservado para ela à mesa; o Arrependimento parece estar a pensar noutra coisa, por mais que a Despedida tente falar com ele.
"Ordem!", grita a Preocupação, que até então olhava pela janela e mexia infinitamente no fecho do casaco. O Orgulho parece enraivecido, mas vê-se obrigado a sentar-se perante o olhar da Fúria, sentada mesmo ao lado de uma cadeira vazia.
"Quem falta?", perguntou a Ansiedade.
"A Tristeza. Ainda não chegou", respondeu prontamente o Tempo, ficando toda a divisão submersa num silêncio pesado.
"Não há de tardar", começou a Distância, dissertando acerca do motivo pelo qual se reuniam naquela tarde. "Hoje celebramos o meu regresso, perante todas as adversidades" - olha de relance para a Felicidade, cujo sorriso parece, por um segundo, desaparecer - "Não sei por quanto tempo fico, mas todos sabemos que quem organiza as reuniões nunca o sabe, ao certo... mas cá estamos. Hoje, vou olhar para as estrelas e pensar em nada mais do que o vazio que ocupa esta minha fase de resignação, de uma apatia misturada com um sentimento de deslumbramento face à forma como a vida é tão bonita quando me desilude. Hoje, vou sentir tudo o que tanto esperou para ser sentido (...)"
Todos ouviam atentamente e com um olhar, de certo modo, encantado. O Sol estava a pôr-se e toda a sala estava pintada de tons de laranja; ouvia-se um piano a tocar, ao fundo. A Despedida e o Arrependimento estavam agora de mãos dadas e a Solidão repousava a sua cabeça no ombro do Tempo, enquanto a Fúria e a Sorte trocavam sorrisos; o Orgulho olhava de relance para a Preocupação, sentindo uma chama dentro de ambos, e até a Felicidade parecia finalmente respirar fundo.
De repente, ouve-se o arrastar de uma cadeira. Alguém se levantou e dirigia-se à saída.
"Já falámos sobre isto", avisou a Distância. "Só te assusto, porque consigo tornar tudo mais bonito... só te sentes ameaçado, porque vês uma certa magia em estar longe deles, um estranho reconforto... volta a sentar-te, por favor. Deixa-te sentir."

"Hoje não", respondeu o Amor, ainda de costas voltadas. "Hoje não."
E fechou a porta atrás dele.

Comentários

  1. Absolutamente deslumbrante!
    Por momentos quase me sentei naquele banquete, incarnando a personagem Admiração que assiste a um estranho encontro de emoções contraditórias, como no país das maravilhas.
    Admiração pelo Amor que não foi capaz de se resignar.
    Admiração por ti.

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