Pesarosa-mente

Acordo com o som da chuva no terraço. Volto-me para o lado vazio da cama e adormeço num instante. Quando volto a acordar, já são sete da manhã e já não ouço chover.
Levanto-me e apercebo-me que a cada dia custa mais um pouco. Sinto uma pequena agonia ao pensar na dor de amanhã, mas logo me esqueço disso quando me sento à mesa, com os cereais à frente.
É março, felizmente ainda não anda por cá ninguém. Lá para maio começam a aparecer e em junho instalam-se para os meses preguiçosos.
Decido que hoje é um bom dia para dar um passeio até à praia. O que vale é que é perto! Pego no casaco e no chapéu e lá vou eu, de mão dada com o corrimão e com a música do meu coxear. Deixo o impermeável, porque confio que ainda veja o Sol.
Passo os olhos pelo jardim e entristece-me.
Quando chego ao cimo das escadas de madeira de onde já vejo o areal, paro. Não sou capaz de subir tudo isto, pelo que vou ficar por aqui. Encosto-me e olho a imensidão azul. Sempre tiveste muito medo dela, ainda que eu não ligasse nenhuma. Sinto um arrepio na mão direita que me deixa uma saudade imensurável.
Já em casa, percebo que são horas de almoçar, mas, como sempre, não tenho fome. Tu é que tratavas dessas coisas, mesmo que eu nunca tenha agradecido ou tomado sequer atenção. Como uns quantos frutos secos e ligo a televisão, para a inércia da tarde. Faço questão de alternar diariamente o lado do sofá em que me sento, para não parecer demasiado deprimente, caso alguém decida olhar pela janela e ver-me sozinho sempre no mesmo sítio.
Falo ao telefone meia hora. Dou em doido se só falar sozinho... preciso de alguém que ouça; não necessariamente de alguém que fale de volta. Ao menos tu aprendeste isso.
Tenho a cozinha cheia de canecas por lavar. Obrigo-me a chegar ao lava-loiças e a começar. Quando olho para a torneira branca, lembro-me e, como reflexo, doi-me a mão. Verifico os nós dos dedos. Calma. É psicológico.
Está a dar outra vez aquele programa que não suporto. Sinceramente, nem me lembro se gostavas ou não. Acho que a dada altura começaste a calar e a concordar comigo.
Entretanto, começou a chover de novo. Está um dia mesmo mau. Doem-me as costas. Era mais fácil apontar algo que não me doa.
...
Começo a perceber que só estou bem fora de mim, porque sempre fui infeliz e, agora, não sinto falta da companhia. Só sinto falta de não estar sozinho.

Comentários

  1. Fica… um sentimento de solidão… solitária.
    A angústia confortável de não querer companhia e não querer estar só.
    Um dia… lá chegaremos.
    Um dia.

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